É perplexo que venho escrever esse texto, pois estou passando a fase mais crítica durante meu período como YouTuber. Durante os últimos anos vinha publicando vídeos constantemente com intuito de não permitir que discursos anticiência e pautados na mentira fossem disseminados. Foram vídeos falando sobre o funcionamento das urnas, sobre o formato da Terra, sobre vacinas e vários outros assuntos. Entretanto, um vídeo sobre uma revista “científica” é o que está me causando a maior preocupação e me fez ficar alerta sobre a possibilidade de CENSURA da minha conta.
Para contextualizar o absurdo, tudo começou em 09/06/2021 com a publicação de um “artigo científico” na “revista científica” Núcleo do Conhecimento. O artigo tem título “CONTESTAÇÃO AO MODELO ASTRONÔMICO HELIOCÊNTRICO, SUAS AFIRMAÇÕES, INCIDÊNCIA DOS RAIOS DO SOL, EXPERIMENTO DE ERATÓSTENES E ORBITA EXCÊNTRICA DE VÊNUS”.
Como se pode perceber já no título, busca-se uma contestação do modelo astronômico heliocêntrico. Como se sabe atualmente, o Sol não é o centro do universo. Ele apenas é o centro do nosso sistema solar. As teses originais do heliocentrismo aventavam que ele seria o centro do nosso Universo, já que na época não se sabia da existência de outras galáxias ou de que sequer nós estávamos inseridos em uma.
Por conhecimento prévio das ideias da autora, eu e outros colegas (engenheiros, físicos e jornalistas) sabemos que a Sra. Ivete pensa que na verdade vivemos no geocentrismo. No modelo clássico de geocentrismo mesmo. Com a Terra no centro do Universo. Isso não está explícito neste artigo. Isso vem do conhecimento de longa data que temos da autora. Os erros de física básica nesse artigo são outros e tão gritantes quanto defender um modelo já superado na história da ciência.
Com a melhor das intenções possíveis, eu e outros amigos ficamos indignados com a publicação de um trabalho com erros que vão da álgebra básica ao não conhecimento dos princípios da óptica geométrica e resolvemos entrar em contato com a revista, pois esse coletivo de pessoas mantém uma página para o combate de erros como esses e relacionados ao formato do planeta Terra. O que obtivemos foi a exclusão de nossos comentários no site da revista.
Então decidi gravar um vídeo mostrando minha completa insatisfação com a publicação de algo tão errado. Coloquei esse vídeo no meu canal do YouTube. Fiz críticas duras à revista. Críticas essas que não retiro. Inclusive falei e volto a dizer que uma revista que publica algo com erros gritantes como os que foram publicados, não pode ser considerada científica. Falei, e deixo agora de maneira escrita que os revisores da revista tem dificuldades com Física do Ensino Médio e Fundamental, pois se tal artigo realmente foi revisto “pelos pares” acredito que os mesmos deveriam estudar novamente o básico do funcionamento da ciência. Sugeriria começar por compreenderem porque existe a chamada “revisão da literatura” em qualquer artigo científico sério. Não é daquelas regras que servem apenas para serem seguidas. Há um propósito nisso.
Pois bem, eis que recentemente recebi do Google um e-mail a dizer que estavam cedendo meus dados por determinação judicial no processo 1048276-10.2021.8.26.0002 na 12ª Vara Cível do Foro Regional II - Santo Amaro da Comarca de São Paulo/SP. Não irei discordar da sentença do juiz que deferiu o pedido da parte em pedir acesso aos meus dados, irei apenas tecer alguns comentários sobre os autos do processo.
Cabe salientar que nesse primeiro processo, eu não sou parte dele. O Google que era parte do processo. O escritório que representava a revista fez um pedido de urgência e liminar para exclusão do vídeo do ar, pois
“Ocorre que, mesmo com todas essas explicações, foi feito um video na rede Youtube pelo canal da pessoa “Felipe Menegotto” (link: https://www.youtube.com/channel/UCQbfBPc1mXlEsQ1zrc9LwIw ) se manifestando sobre o referido artigo, e caluniando e denegrindo e menosprezando ou como foi publicado no vídeo “#EsporroCientífico” para com a revista ora publicadora bem como seus editores”.
Discordo da calúnia e do processo de denegrir a imagem da revista, entretanto concordo com o menosprezo. É exatamente o que eu sinto quando um dos processos básicos da ciência não é respeitado por uma revista que se intitula científica e consta na base de dados da CAPES com classificação qualis B1.
Segundo a defesa da revista, minha suposta calúnia estaria presente nos seguintes trechos:
“00:30 – Diz que a revista publicou uma besteira e que não é uma revista científica.
00:46 – Diz que a Revista está negando conhecimentos de ensino básico
01:40 – Diz que não irá criticar a autora, o que ja fez outras vezes, e que nesse video irá criticar a revista
03:10 – Diz que revisores não entendem de física do ensino médio, que é uma ignorância
03:35 – Diz que o artigo é uma porcaria
05:26 – Questiona a capacidade dos revisores devido a uma possível erro de português/formatação
07:30 – Diz que quer xingar no twitter
09:00 – alega que os revisores têm falta de conhecimebnto sobre os assuntos
13:55 – diz que os revisores não sabem o que é modelo científico
17:52 – diz que os revisores não têm capacidade e não entendem do assunto
26:12 – Diz que não entendem de ciência, que tem falta de conhecimento e que isso o “irrita”
27:15 – diz novamente que não entendem o básico
29:30 – diz serem desonestos ou que não tem conhecimento
30:00 – Pede para seus seguidores compartilharem o vídeo.”
Chamo a atenção que os advogados, tal como a revista, cometem muitos erros de português. Aliás, esse não é um grande problema, apenas chamo a atenção ao fato. O problema está justamente em um escritório de advocacia dizer que a fala presente em 01:40 entraria como conteúdo probatório que DENEGREM a imagem da revista. Usei a conjugação do verbo DENEGRIR como o escritório usa em seu documento de defesa. Entretanto, acho melhor não corrigir o português, pois não quero que o escritório venha a pedir pela reparação cível em cima desse texto por eu corrigir o básico da língua portuguesa. De maneira alguma quero trazer elementos que DENIGREM a imagem do escritório.
Apenas continuando esse pequeno parênteses em relação à língua portuguesa, muitas pessoas poderiam se perguntar: Felipe, no seu vídeo estás a cometer erros de conjugação verbal a todo momento, como explicas isso? Utilizas o pronome “tu” com a conjugação da terceira pessoa do singular. Que heresia! Que hipocrisia!
Pois é. Eu sei que é difícil entender. Inclusive eu sofri um leve auto preconceito retroativo linguístico ao assistir meu próprio vídeo para tentar compreender se havia cometido um discurso de ódio. Confesso que senti alguma estranheza ao ouvir os erros de conjugação. Isso porque estou fazendo doutorado em Portugal e estou morando aqui há 6 meses e todos utilizam a conjugação da norma culta da língua portuguesa. O fato é que esse tipo de conjugação errada é parte da cultura das pessoas que falam o português na cidade de Porto Alegre no Estado do Rio Grande do Sul. E portanto todas as pessoas ao seu redor falam da mesma maneira “errada”. E portanto, se falas corretamente, a pessoa que teria um destaque seria aquela que fala corretamente. Destaque no sentido mais amplo da palavra. Não como algo positivo, mas como alguém que chama a atenção por conjugar as palavras de maneira correta. E nesse sentido, a atenção maior estaria nesse pequeno detalhe ao se conversar com as pessoas e não na mensagem. E no YouTube que eu falava com todo o Brasil, por qual motivo não fazia a conjugação correta? Porque estava falando com uma webcam. Então é mais difícil de perceber se a conjugação errada incomoda. Agora que estou morando em Portugal, tento utilizar a conjugação correta porque aqui todos utilizam dessa maneira e não quero me “destacar” por falar errado. Em Porto Alegre? Ok. Aqui em Portugal? Não. Que fique claro que isso não tem relação qualquer com uma possível “síndrome de vira-lata”. É apenas porque a totalidade das pessoas ao meu redor falam assim.
Como me importo mais com a mensagem, tento fazer com que qualquer palavra ou forma de falar tente chamar a menor atenção possível. Quero que minha mensagem seja inteligível. Por isso também sempre optei por não utilizar palavras complexas. Inclusive a última palavra, inteligível poderia ser de difícil compreensão. Por esse motivo, dou um exemplo de algo que NÃO é inteligível. O artigo publicado na revista núcleo do conhecimento. Se um conjunto de pessoas com formação na área percebem erros graves em um artigo e não conseguem em alguns momentos compreender o que está escrito, é porque falta inteligibilidade.
Deixando o português de lado e voltando ao assunto em 1:40 do vídeo. Eu falo que farei CRÍTICAS à revista. Fazer CRÍTICAS é o mesmo que denegrir e caluniar? Claramente temos aqui um elemento juntado ao conjunto probatório que demonstra que a revista científica acredita não ser passível de CRÍTICAS.
Os demais pontos levantados no conteúdo probatório estão devidamente explicados pelas partes ausentes nos destaques feitos pela revista. A falta de conhecimento dos revisores sobre FÍSICA BÁSICA são elencadas nos trechos ausentes daqueles destacados pela defesa da revista. Inclusive a explicação de UM dos erros sobre a questão do paralelismo dos raios de luz no modelo de Eratóstenes está explicada de maneira extremamente didática - modéstia à parte - no vídeo. Inclusive explicando para a autora e para os revisores, o que é uma MODELAGEM CIENTÍFICA e o que é uma APROXIMAÇÃO.
Segundo a defesa da revista, por esses motivos “o vídeo ora indicado nesta exordial, contém discurso de ódio e prática de calúnia contra a revista e seus editores.”
Sim, isso mesmo. Discurso de ódio!
Afirmo no alto das minhas faculdades mentais que ódio é algo que não sinto, ainda. Apesar da tentativa de CENSURA.
No pedido inicial dos advogados da defesa foi escrito que “que liminarmente o vídeo do sítio administrado pela ré (site de busca Google e YouTube), links apontados na inicial, seja retirado do ar no prazo de 24 (vinte e quatro horas) sob pena de multa diária, em caráter de astreinte”.
Um dos links era o link direto do CANAL, não do vídeo. Caso o juiz tivesse acatado a remoção desse link da plataforma do YouTube, seria o mesmo que CENSURAR o meu canal previamente. Conforme a defesa do Google:
“Inclusive, chama-se atenção ao pedido da Autora de remoção dos “links” indicados na exordial, o que, destaca ao fato de que um deles corresponde ao canal onde o vídeo foi publicado, o que, apenas por amor ao debate, frisa-se que a remoção de canais é vedada pelo ordenamento jurídico, principalmente naquilo que preceitua o artigo 19 em relação a identificação inequívoca do conteúdo”
Confesso de boa fé que acredito que o escritório de advocacia não tenha muita familiaridade com essa questão dos links e portanto acho que o escritório apenas pediu uma CENSURA CULPOSA. Isso existe no ordenamento jurídico? Não. Então, explico esse pequeno conceito criado agora. É o pedido de censura sem intenção de censurar. Prefiro pensar nisso, do que pensar que um escritório de advocacia tenha pedido pela CENSURA prévia de um canal de maneira propositada. Não acredito que um escritório de advocacia iria contra uma das cláusulas pétreas da nossa constituição de 1988.
Além disso, a defesa do Google utilizou o princípio da liberdade acadêmica para defender que não deveria tirar o vídeo do ar. Nas palavras do escritório de advocacia do Google:
“Conforme mencionado anteriormente, a Google não realiza a fiscalização prévia de vídeos postados e, para aderir à plataforma, o usuário concorda com os Termos de Uso, Políticas de Privacidade e Diretrizes da Comunidade, assumindo total responsabilidade pelo conteúdo que divulga.
Neste caso, contudo, em que pese a Google não ter sido a responsável pela veiculação do vídeo reclamado pela Autora, o conteúdo reputado como ofensivo, na realidade, não merece ser excluído definitivamente da Internet, pois representa regular exercício do direito à liberdade de expressão, da livre manifestação de pensamento e do direito de crítica.
A questão envolve críticas a um artigo publicamente disponibilizado, por um usuário na plataforma do Youtube, onde, em que pese não concordar com seu conteúdo, não sabe a Autora extirpar o conteúdo da internet, eis que enviado de interesse público e visando garantir a liberdade de expressão da população, tão mitigados na atualidade. Inclusive, este MM. Juízo, ao indeferir a tutela de urgência, devidamente observou a questão:
““Em juízo de cognição sumária, não é possível verificar tal situação, porquanto a publicação do vídeo de 30 minutos questiona argumentos científicos do artigo veiculado, devendo ser analisado o conteúdo em questão, se de cunho pessoal ou apenas relativo a discordâncias de posicionamentos e opiniões”.
Manifestar-se a respeito de um artigo publicamente disponível por pessoas que entendem do assunto é plenamente possível nessas condições. Debater a respeito da qualidade de determinado conteúdo, é uma atividade intrínseca não somente à atividade acadêmica, mas à própria lógica do artigo impugnado, eis que ele próprio questiona trabalhos de outros teóricos, sendo certo que o debate de informações é extremamente relevante, ainda mais no mundo jurídico. Construir um ambiente de possibilidade de veiculação de pensamento crítico não significa navegar em águas tranquilas - e isso vale também para as críticas envolvendo trabalhos acadêmicos, principalmente. Pelo contrário: liberdade de expressão verdadeira significa poder questionar, entrar fundo na questão em debate, inclusive de maneira contundente, porque, como definido pelo c. STF na oportunidade de julgamento da ADPF 130/DF “o possível conteúdo socialmente útil da obra compensa eventuais excessos de estilo e da própria verve do autor. O caso dos autos traz ao conhecimento do Poder Judiciário a veiculação de críticas incisivas em uma plataforma aberta voltada à disseminação de informações e opiniões. Pode-se concordar, ou não, com a crítica, mas a opção pela censura adotada pela empresa autora é certamente criticável e contrária aos mandamentos constitucionais em vigor no Brasil”
Muito obrigado Google. A parte grifada é muito importante para quem defende a livre circulação de ideias.
Com isso, apesar da tentativa de censura (culposa ou não), ainda não conseguiram. E se o Estado Democrático de Direito ainda vigora no Brasil, jamais conseguirão.
Agradeço aos amigos que ajudaram com a leitura prévia desse texto (não para a censura), mas para a correção dos erros de português. Agradeço também aqueles que saíram em minha defesa.